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"violência contra 

a mulher e questões

sobre gênero

entrevista com 

Cristiane Lopes

Por: Franciane Nolasco

O seguinte texto foi produzido a partir de uma entrevista realizada com a Drª Cristiane Maria Sbalqueiro Lopes, que além de uma grande e querida amiga, mulher empoderada e empoderadora, é Bacharel em direito pela Universidade Federal do Paraná, Mestre e Doutora pela Universidad Pablo de Olavide de Sevilla (títulos revalidados no Brasil). Procuradora do Ministério Público do Trabalho e professora da Escola Superior do MPU. Coordenadora nacional do Grupo de Trabalho sobre Migrações, do Ministério Público do Trabalho. O texto que aqui lhes apresento foi uma compilação da entrevista, tendo sido endossado em sua apresentação final pela Drª Cristiane. 

 

Cris, temos notado um movimento no seu trabalho muito importante, principalmente nos encontros lançados nesse ano pelo IPEATRA através do programa “Gêneros em perspectiva”, com relação aos direitos da mulher, à violência doméstica, ao assédio moral, ao assédio no trabalho e às discussões sobre gênero e o âmbito social em geral e o âmbito jurídico. Gostaria de lançar aqui para a nossa discussão dois pontos de abertura de campo para que pudéssemos ampliar nosso conhecimento e debate com relação a essas temáticas. No primeiro ponto de abertura, gostaria que discorresse para nós sobre o que, no seu ponto de vista, são, dentro do setor jurídico atual e da sociedade em geral, pontos de avanço e pontos de retrocesso no que diz respeito à violência contra a mulher (misoginia ou não), bem como pontos de avanço e retrocesso sobre as questões que envolve discussões de gênero.

 

Em uma primeira aproximação podemos nos valer de um material produzido por Heloísa H. P. Veloso e José M.P. Caldas em formato de Ebook chamado “Medicina Social: Direito, Saúde & Cidadania”. No artigo “A Violência Doméstica em Mulheres com Câncer", que compõe esse material, temos um pouco da resposta para os avanços que estão acontecendo nesse caminho. O artigo apresenta números assustadores advindos de dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2018): “no ano de 2017, foram registrados, no âmbito da violência doméstica, mais de 221 mil boletins de ocorrência relacionados à lesão corporal dolosa, 60 mil relacionados a estupros, 4.539 relacionados a homicídios femininos e 1.133 relacionados a vítimas de feminicídio” (p.115). 

No artigo compreende-se que a violência contra a mulher no mundo todo advém principalmente do fator machista que configura as relações de gênero em nossa sociedade atual. Contra esses números assustadores, o estudo aponta a necessidade de investimento em políticas públicas focadas no enfrentamento desse cenário. Em 2006, no Brasil, foi sancionada a Lei 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha como mecanismo de coibição à violência doméstica contra a mulher. Segundo o estudo, essa lei ampara todas as pessoas que se identificam com o sexo feminino (sejam heterossexuais ou homossexuais), que estejam em situação de vulnerabilidade em relação ao agressor, seja ele marido, companheiro, parente ou pessoa de convívio da vítima. Sendo que a definição de “violência doméstica” para a citada Lei é “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral e patrimonial”.

Ainda sobre as especificidades dos tipos de violência descritos, vale a pena destacarmos quais são: 

1. violência física (mulheres que sofrem tapas, murros, empurrões, puxões de cabelo, pontapés, arranhões, tentativas de afogamento,queimaduras e até suas formas mais graves, que podem causar a morte); 

2. violência psicológica (mulheres que sofrem humilhações, xingamentos, chantagens, comentários maldosos, controle de suas ações, de suas crenças e de suas vontades); 

3. violência sexual (mulheres vítimas de estupro ou qualquer ação em que seja forçada ou ameaçada a presenciar ou a manter relação sexual forçada, sem a sua permissão, inclusive com o próprio marido); 

4. violência patrimonial (quando a conduta do agressor é de tomar, esconder, subtrair, destruir documentos pessoais, de trabalho, bens e dinheiro. Iguala-se também o ato de impedi-la de receber salários, pensões, indenizações etc);

5. violência moral (ato de ofender a vítima com calúnias, injúrias ou difamações).

A Lei Maria da Penha, para os crimes praticados como esses modos de violência, pode prever prisão do suspeito de agressão, a violência doméstica tornou-se um agravante para aumento da pena, a pena não pode ser substituída por doação de cestas básicas ou multas, há possibilidade de afastamento do agressor com relação à vítima podendo incluir seus parentes e possibilidade de assistência econômica caso a vítima seja economicamente dependente do agressor. Segundo o artigo, além dessas consequências para o agressor, também há a possibilidade de acionamento de “Medidas Protetivas” para a vítima, como obrigar o agressor a “afastar-se fisicamente da mulher, de seus filhos, parentes e testemunhas; proibição de qualquer contato, inclusive por telefone ou redes sociais; pagamento de pensão alimentícia, no caso de dependentes etc.” (p.116), Além da vítima ser incluída no Serviço de Proteção à Mulheres, onde pode ser encaminhada, junto a seus dependentes, a abrigos de proteção. Por fim, o estudo salienta que o combate à violência contra a mulher é um desafio diário enfrentado pelos profissionais que recebem a notificação, acolhem e encaminham as vítimas, mesmo que haja avanços relacionados à Lei Maria da Pena.

Pensando em termos de retrocessos, há evidências de dois pontos importantes que sustentam o retrocesso e atraso de caminharmos nessa área: o primeiro deles é a destruição do estado social. Isso se caracteriza como retrocesso porque é o que permitia que a mulher pudesse ser livre para trabalhar e ter uma vida independente daquele que pode lhe estar agredindo. Em uma das lives do IPEATRA do programa “Gêneros em perspectivas” foi comentado sobre o fato de que um número alto das mulheres que sofrem violência doméstica são dependentes economicamente do agressor, sendo este um aspecto preponderante muitas vezes que influencia na capacidade da mulher de se afastar desse agressor. O estado social, por exemplo, é o que fornece prestações positivas, como escola, creches e saúde para todos. Essas são preocupações que recaem com “tarefas da mulher” dentro do imaginário social do que é o papel da mulher na sociedade, embora quiséssemos que isso fosse diferente. Assim, a destruição do estado social se deu a partir da implementação insidiosa do neoliberalismo, a partir de 2017. Ali começou um naufrágio com a emenda constitucional limitadora dos gastos públicos justamente em áreas sociais. Precisamos compreender essa relação: se não tem escola e creche, é a mulher em nossa sociedade que deixa de trabalhar e ter uma vida autônoma, voltando 20 casas nesse caminhar pela igualdade. 

Penso que um segundo retrocesso que podemos nomear aqui é, sem dúvida, o novo discurso a respeito de que o feminismo é prejudicial e de que não existem “estudos de gênero”. A ideologia imposta pelo novo governo tenta posicionar o Brasil dentre os países que dizem que gênero é igual a sexo. Precisamos notar que os países que dizem isso são, por exemplo, Afeganistão, Paquistão e alguns países africanos, os quais praticam mutilação genital feminina. O Brasil dentro desse discurso está se associando a esse tipo de mentalidade e isso não é uma hipérbole, é uma realidade. No Brasil temos os dados de que: saímos do primeiro semestre de 2021 com uma taxa de um estupro coletivo sendo realizado a cada 100 minutos. Segundo números relatados pelo sistema hospitalar de mulheres que sofreram violência sexual e foram atendidas nos hospitais, há um aumento significativo do ano de 2011 para o ano 2019 de 1.535 para 5.372 de casos de estupro. A mentalidade do estupro coletivo parece estar relacionada à mentalidade da masculinidade tóxica de poder sobre o corpo da mulher. É uma mentalidade que nesse sentido, nos aproxima desses países anteriormente citados, inclusive em termos de realidade concreta de violência contra a mulher. 

Por esse motivo, é difícil dizer que há “avanços” como estamos aqui tentando descrever porque a evolução da sociedade não é linear. Existe essa narrativa de que fomos nos desenvolvendo ao longo da história e que somos civilizados hoje, mas, particularmente, sempre me questiono sobre essa suposta evolução. Gostaria de poder olhar os números das violações contra a mulher nesses países para ter certeza de que estamos realmente em uma situação melhor aqui no Brasil. E mesmo que queiramos pensar em avanço, como pode haver um avanço que compense a marca de 5.000 estupros coletivos por ano a que chegamos? Acho que podemos pensar em avanços e retrocessos em termos de um recorte da realidade, mas teríamos de esquecer de tudo que está acontecendo nesse fundo que foi recortado. 

Essa mentalidade “de gênero é igual ao sexo” está impregnada no brasileiro em diversas camadas da sociedade, da política e da nossa cultura. Não podemos afirmar que seja apenas o fenômeno do governo atual responsável por isso, mas que existe sim um lugar em nossa sociedade que formou e continua formando homens com mentalidade de que precisam violentar ou dominar as mulheres para se sentirem bem ou superiores. Num outro contexto há o exemplo também, quando a ministra Damares diz que “as meninas são estupradas porque não têm calcinhas”, a gente percebe que não adianta ter uma lei boa protegendo contra a violência se temos uma mentalidade como essa. E essa mentalidade possui reflexos muito típicos dentro do nosso cenário, essa mesma mentalidade que questiona as ciências sociais e que compreende que os profissionais do direito podem seguir livres com seus preconceitos. Isso é um dos fatores que coaduna para o fato de vermos tantas mulheres sofrendo quando denunciam abusos em várias áreas, lembrando aqui do mais recente dos casos que pudemos acompanhar, a saber o da Mariana Ferrer de 2020.

É importante ressaltar que, pensando em casos de julgamentos específicos de crimes de feminicídio que temos acompanhado na mídia, também podemos delinear como algo que tem nos chamado à atenção de forma positiva é que há muitos crimes sendo condenados em que a maior parte dos profissionais envolvidos são homens, tanto o juíz, quanto advogados e quanto o juri. Em alguns desses casos, embora os réus muitas vezes usem seus direitos de escolher quem irá julgar seu caso favorecendo a participação de homens, podemos notar que mesmo em sua maioria sendo homens há um cenário de que algo positivo possa estar acontecendo na transformação da mentalidade dos profissionais. Esse é um ponto muito importante de ser destacado devido a mentalidade de muitos dos profissionais do DIreito ser questionável nesse sentido que mencionamos anteriormente.

Por outro lado, também temos as notícias dos acontecimentos que corroboram para degradação no caminho de luta pela igualdade, como, por exemplo, a declaração da presidenta do Tribunal Superior do Trabalho com relação a lei que está tramitando - que prevê multa para casos de discriminação salarial contra a mulher - dizendo que essa lei atrapalha as mulheres, no sentido de que os patrões ficarão com medo de contratar as mulheres por medo de pagar multa. Mentalidade essa que ainda perpassa a justificativa do agressor ao invés da proteção às vítimas. Essa legitimação seria muito importante dentro do cenário conservador e de interpretação conservadora das leis existentes em que não há práticas que enfrentam os problemas de equiparação salarial por motivo de discriminação de gênero. 

Uma outra possibilidade de nomear como retrocesso seria o desmantelamento da sensação de unidade de nossa sociedade, esse desmantelamento é constitutivo do processo de produção de subjetividade hoje uma vez que o individualismo impera dentro de nosso sistema. Podemos ver hoje alguns grupos de mulheres tentando mudar essas realidade. No entanto, ainda há aquelas que reproduzem o discurso machista e de culpabilização da vítima, sendo que isso é, na verdade, um discurso do estado neoliberal que joga a culpa de nosso fracasso em nós mesmas quando estamos em um sistema que se abastece de fracasso produzido. Isso pertence a muitos âmbitos e camadas da nossa sociedade, e no meu campo profissional com relação aos nossos direitos trabalhistas, sou testemunha de que as coisas estão cada vez mais piorando. 

Hoje estamos enfrentando um inimigo que foi internalizado na subjetividade dos trabalhadores de pequenas empresas que são explorados por empresas maiores e além de corroborarem para o sucateamento de suas condições de trabalho, pela lógica de tornar-se um empreendedor e ter domínio sobre os outros menores que ele, acaba por fazê-los justificar o próprio processo de ser explorado pelas empresas maiores como algo válido diante de seu novo status social de trabalho, a saber o de “empresário”. Ele passa a não se ver como trabalhador explorado e enganado, mas defende e sustenta que houve a tentativa de lhe darem um golpe uma vez que “se pretende enquanto de igual para igual diante da grande empresa”. A partir desse exemplo, podemos compreender como o neoliberalismo acabou com as ideias de distinções entre classes e entre os trabalhos, uma vez que a capacidade de subir pro seu ápice enquanto empreendedor é permitida dentro de cada “realidade” conforme seus esforços.

 

Assim, os serviços sociais como aposentadoria, direito à saúde e direito à moradia, por exemplo, se tornam obrigações restritas de cada um, sendo que se alguém não pode se haver com o cumprimento de suas necessidades básicas isso é de responsabilidade daquele sujeito em específico. E isso tem tudo a ver com gênero, pois da mesma forma, há o discurso de que as condições básicas de vida devem ser produzidas totalmente por quem teve o filho. E que a mulher deveria saber que terá de sair do mercado de trabalho para cuidar do filho. Se ela não tem dinheiro para pagar uma creche, ela foi irresponsável em ter filhos nesse sentido. Além disso, é uma mentalidade que endossa a noção de que são as mulheres que têm obrigação de cuidado com os filhos e com os mais velhos. 

É importante ressaltar que essa luta não é pelo não querer exercer a maternidade ou por ter direitos que não me deixem exercer a maternidade. Como, por exemplo, na Espanha em que essas questões foram resolvidas pelo “a mulher pode dividir sua licença maternidade com o homem” e pode retornar ao trabalho antes para que o pai fique cuidando da criança. Essa é uma solução que não faz a estrutura se modificar e que novamente está buscando apenas nos recursos e direitos do trabalhador as modificações para a via de solução. O que estamos falando é de uma mentalidade muito mais diferenciada e mais profunda, do resgate da mulher poder ser mulher, exerce sua maternidade pelo tempo que é bom para ela e para criança tendo seus direitos de trabalho garantidos. Para a classe baixa trabalhadora, não há condições de não deixarem as crianças em casa e irem trabalhar. E com os cortes cada vez mais altos dos serviços sociais disponíveis não há possibilidade de não haver discriminação no trabalho.

 

Antes, por exemplo, havia uma lei que obrigava determinadas empresas a terem creches, mas porque diversas substituições foram sendo permitidas e foram sendo feitas negociações como para creches conveniadas muitas vezes distantes do trabalho da mãe ou para vales-creche que não cobrem os custos, as mulheres foram se obrigando a novamente arcar com os custos do serviço social para os filhos. Outro exemplo é a falta de licença maternidade para as mulheres enquanto novas empreendedoras que devem dar conta de sustentar financeiramente o seu próprio período de licença maternidade.

 

Cris, no segundo ponto de abertura, gostaria de lhe pedir que falasse-nos sobre o que, no seu ponto de vista, são pontos que possuem reais possibilidades de serem trabalhos no sentido do avanço nessas mesmas questões, isso no setor jurídico e na sociedade como um todo. Isso pode perpassar desde práticas que envolvem outras profissões e que podem ser realizadas em diversos âmbitos da sociedade quanto especificamente dentro do setor jurídico (em sua diversidade).

 

Acho que anteriormente quando menciono essa mentalidade que circunda sobre o que seria o “papel da mulher” dentro do lugar de vítima, muito presente na mentalidade de profissionais do Direito e das pessoas que lidam com a justiça acaba por iniciar essa discussão. De uma certa maneira, nós precisamos de uma mudança de mentalidade. Precisamos das ciências sociais, da psicologia para mudar as cabeças dos agressores e das vítimas. 

Tenho defendido a criação de “Grupos de reflexão” para homens para que eles superem a masculinidade tóxica que continua sendo regra no Brasil, principalmente agora que querem acabar com os estudos de gênero, como a falaciosa justificativa de que as crianças correria risco de desenvolver depressão por ter um “portfólio de opções de autodeterminação” de sua vida e sexualidade. É preciso desenvolver uma mentalidade solidária, superando o neoliberalismo. Veja o quanto estamos longe disso quando o principal temor das pessoas é sobre uma possível “comunização” do Brasil. Se cada vez que pensarmos nas pessoas como irmãs corremos o risco de sermos acusados de “comunistas”, nunca vamos chegar a lugar nenhum. Sabemos que muitas vezes precisamos aderir ao neoliberalismo para sobreviver, visto que é o sistema para nós vigente atualmente, como por exemplo aderir ao lugar falacioso de “empreendedor” como motorista de Uber se a outra opção for o desemprego. Mas não podemos cair na falácia de que isso é bom para nossa sociedade. 

Há, portanto, uma preocupação ao ataque neoliberal, no sentido de resgate do senso de coletividade social e da necessidade de resgate da importância dos serviços sociais na constituição do cenário da mulher e, por outro lado, há o ataque no sentido ideológico. Precisamos compreender que as ideologias que estão sendo apresentadas à nós no governo atual não são apenas do âmbito superficial do não reconhecimento da complexidade de gêneros existentes e pensados a partir da comunidade LGBTQIA+. Muito pelo contrário, elas são um dos tripés que fundamentam a prática política do governo atual. O presidente, por exemplo, não sancionou essa lei trabalhista que prevê multa por discriminação salarial por motivo de gênero e ainda estão se associando internacionalmente com os países que praticam as piores violações conhecidas contra a mulher. Além disso, produzem factóides e caluniam a maior parte dos livros que buscam elucidar para as crianças o processo de diversidade de gênero que existe em nossa sociedade. 

Nesse sentido, o que me preocupa mais no negacionismo sobre as diferentes identidades de gênero, sobre esse discurso do “gênero é igual ao sexo”, é a possibilidade de a partir disso ocorra o silenciar da mulher na sociedade, negando tudo que vem sendo estudado sobre gênero nos últimos 70 anos ou mais, pensando nas escirtoras feministas que já existiam na idade média. Pensando nisso em termos de estruturas sociais, a gente precisa pensar as possibilidades de efeito desses estudos produzirem essa espécie de conformidade para os homens obterem algum poder dentro de uma sociedade em que já não existe mais possibilidade de mobilidade social ou que ele é muito reduzido, no sentido de que pelo menos assim o homem pode se manter num status quo de domínio com relação à mulher. 

Particularmente agora, para as possibilidades de para onde podemos caminhar, eu pessoalmente estou interessada nos grupos reflexivos para homens em todas as esferas. Nós temos uma tendência (muito justificada) de olhar para vítima porque obviamente ela precisa de acolhimento, no entanto, não deveríamos parar por aí. Talvez a gente esteja presumindo que os agressores “não têm jeito”, que “são assim mesmo”. É muito difícil chamar os homens para participarem desses grupos, primeiramente por causa da dificuldade de homens não violentos (que são contra a violência) não se consideram machistas de forma alguma e, em segundo momento, também ainda não se conseguiu trazer de forma realmente significativa os homens para dentro da causa feminista. 

Alguns pequenos estudos sobre esses grupos reflexivos que acontecem com homens violentos têm mostrado a possibilidade de diminuição drástica de reincidência nos crimes, até mesmo para aqueles que frequentam esses grupos de forma obrigatória, os encontros parecem produzir um efeito significativo a ponto de diminuir muito a taxa de reincidência. Isso é uma grande coisa que precisa ser explorada, feita com consciência e com estudos sérios. Precisa ser ampliada. Existem mais de 50 grupos reflexivos aqui no Paraná já. Os grupos reflexivos estão previstos na Lei Maria da Penha, antes de condenar o marido violento (aquele que pode ter realizado ameaça ou agressão física) o juíz pode impor que ele frequente um grupo de reflexão para homens e, a partir desse momento, os índices caem muito drasticamente. Eu acredito que em termos inclusive de lei, esse grupos poderiam ocorrer em caso de pessoas que são racistas, pessoas que praticam assédio moral no trabalho, pessoas que praticam discriminação, xenofobia, entre outros. Acredito que a mesma lógica poderia valer para todos esses outros tipos de violência.

 

No ambiente de trabalho há muitos códigos de éticas assépticos, de discursos que muitas vezes não são contemplados na prática das relações, então nesse sentido as pessoas que são flagradas praticando qualquer tipo de violência poderiam além do que já existe como os casos de indenização, haver uma conscientização aprofundada junto a essa pessoa que pudesse aproximar as possibilidades de uma transformação real de compreensão de mundo e comportamento para os agressores. Geralmente pode haver a possibilidade desse agressor não compreender o porquê aquilo que ele fez não deve ser feito e abrir possibilidades para outras mentalidades. Eu acredito que aí pode haver um campo muito amplo para trabalho da psicologia, de proporcionar uma capacidade de reflexão pra esses agressores, assim como proporcionar a possibilidade de abertura de uma nova mentalidade sobre a masculinidade para as próximas gerações.

 

Sim, Cris, a gente percebe que parece que por mais difícil que seja olhar para o agressor, parece que uma mudança estrutural só poderá acontecer quando superarmos nossas dificuldades em compreender que um agressor é um ser humano, que pode ser ouvido e que talvez nesse processo inclusive pare de fazer novas vítimas. Apesar de ser difícil, a única possibilidade de cura de um sistema só pode vir quando incluímos o agressor naquilo que precisa ser transformado na sociedade. É claro que não estamos negando que o homem está em posição privilegiada dentro desse sistema de produção da masculinidade tóxica, é que pensar em como o homem podem estar sendo atingido por esse sistema não é negar que a mulher é a mais oprimida, é talvez onde mora a possibilidade de mudanças mais reais, junto a transformação das mentalidade adoecidas e adoecedoras que aqui mencionamos hoje. Uma possibilidade para cada um sempre será perceber seus limites e mesmo que não consiga olhar para as possibilidades de mobilizar esse agressor a uma mudança, não impedir que outros possam avançar nessa proposta.

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